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#001 - Aprenas dois garotos pobres
edição 001 - Diário de um Neurodivergente
Edição 001
Edição 001
Aprenas dois garotos pobres
Em 2018, estudando para passar em concurso e sair de uma cidade pequena de interior.
Parte I: Apenas dois garotos numa cidade pequena
Era tarde. O sol fazia sua bagunça habitual na minha cabeça. A luz forte afinal é algo que eu nunca soube lidar muito bem. Na quadra haviam vários garotos jogando o jogo mais popular da nossa era juvenil: o futebol. Eu, como sempre, me encontrava absorto em pensamentos e devaneios, e como de praxe, pouco interessado no que acontecia na quadra. Estava tão perdido dentro de mim que quase não noto a bola que passa perto da minha cabeça com violência. “Pronto” penso. Só me falta levar uma bolada na cara, e cair no chão de novo como na semana passada. A turma toda rindo de mim. Apesar de isso ser uma constante, penso que nunca vou me acostumar. Cada humilhação era absolutamente nova e paralisante.
Olho para o lado e vejo aquele menino veloz, dançando entre as pessoas, sem nunca perder de vista a bola nos pés. Ninguém conseguia segurar ele. Um talento excepcional. Deixava o rastro de pessoas embriagadas pra trás.
A cena que tenho na memória é apagada, opaca. Não consigo lembrar muito bem de nada além das panturrilhas salientes e da boca. O cabelo talvez estava pintado de loiro amarelo. Nunca mais o vi. Exceto na TV. Em alguns anos a cidade passou a falar mais dele. Começou a ser escalado para jogar em times cada vez maiores. Contratos cada vez mais grandes. Contratos milionários. Com 26, ele já tinha um salário maior do que 2,6 milhões de euros. Com 26, eu era um completo caos.
Durante décadas não consigo lembrar dessa cena. A cena em que dois meninos talentosos e pobres se encontraram por algumas horas na mesma quadra. Um deles deu um show. O outro quase tomou uma bolada e não falou com ninguém.
Durante 20 anos eu não sou convidado a refletir sobre os dois caminhos dessas duas vidas que foram forjadas na dificuldade, e contra todas as probabilidades. Não sou convidado a refletir o motivo desse garoto ter tanto sucesso, e tão cedo, enquanto que demorei quase duas décadas para ter algum trabalho que me desse prazer e que não tentasse me forçar a ser algo que não sou.
Eu estava ocupado demais tentando sobreviver, de modo que não percebi que meu país deixa as pessoas com talentos criativos abandonadas. Mas existe um mecanismo de prospecção desses talentos notávelmente efetivo no futebol. O sistema é capilarizado. Descentralizado. Eficaz e eficiente. Olheiros estão em todos os bairros caçando novos jovens talentosos. Clubes recebem-nos e investem no treinamento desses jovens. O sistema de forjar uma excepcionalidade no futebol brasileiro é incrível! Faça uma entrevista com 100 jogadores e veja que a origem da imensa maioria dele é como a origem dos dois garotos da história que este texto traz.
Então por que não temos esse mesmo mecanismo aplicado a arte, ciência, literatura, poesia?
Por que um país selecionaria um tipo de habilidade em detrimento das outras?
Parte II - Músico frustrado
Enquanto o menino futebolista crescia de forma meteórica, o menino tímido e criativo passava horas e mais horas em hiperfoco lendo, escrevendo e, na maior parte do dia, compondo e ouvindo música. Conforme o corte que fizermos na história, caro leitor (pois aqui temos o poder de brincar com o tempo) encontraremos um Jean confiante, inabalável, em algumas épocas, ou encontraremo-no tão hesitante a ponto de te dar-te raiva, em outras.
Você deve ficar curioso, e se perguntar: qual foi a causalidade responsável por essas situacões onde Jean do passado estava confiante? Te digo: examinando a fita do tempo com curiosidade, observarás que quando a confiança estava presente, era por que temos uma pessoa que estava valorizando suas qualidades e sua verdade mais fundamental, e preservando sua essência.
Em outras partes da história você tem uma tentativa insana de encontrar validações externas. E a pior coisa que pode aocntecer com um neurodivegente é ele acabar sendo levado a achar que deve encontrar uma explicação fora de si mesmo sobre como ele deve viver sua vida.
Recebia perguntas no instagram, quando abria a famosa "caixinha de perguntas". Ficava impressionado em como as pessoas me davam a liberdade de dizer como elas deveriam viver suas vidas de forma fácil e rápida. Bastava eu me dispor a responder algo e logo alguém escrevia: “Eu gosto disso e daquilo, o que devo fazer da vida?” Eu respondi, certa vez, que se eu disser o que você deve fazer com sua vida tem algo muito errado comigo. Assim como tem algo muito errado com você se você aceitar que eu te diga como se vive.
As décadas foram passsando, e se me permite um distanciar mais longe de todo esse filme, agora podes imaginar como se pudesse espremer todos os anos desse garoto, e decifrar o suco que cai desse ato de espremer, como se pudesse resumir boa parte da vida dele com o apertar de tuas mãos. Pois bem, o suco que cai tem gosto amargo e ácido: de mascaramento, de hesitação, de medo de ser quem se é.
A arte é uma atividade de alto risco.
A música, como você bem sabe, não é algo que se possa classificar como uma atividade de baixo risco. Não que escrever música seja insalubre por si só, mas é que o compositor precisa vender o que fez, e nesse intervalo entre o tempo de producão e o tempo de venda do que se produziu, as necessidades não cessam! A vida do artista é uma vida perigosa. Compare isso com um jogo num cassino. Quanto mais alto o potencial de ganhar, mais alto o risco de perder. As apostas aumentam os dois riscos: de ganhar e de perder, ao mesmo tempo, e na mesma proporcão.
Quando você tem um grande talento artístico você tem um grande perigo junto a ele. Primeiro porque o artista por essência não pode se dobrar frente a sua verdade, sob pena de adoecer e viver uma vida psiquica miserável. Ele não poderá viver feliz atrás de um balcão de loja. Isso não o é emocionalmente possível. Se ele não está se ocupando em criar, ele está se ocupando em morrer. Segundo por que o artista é aquele que é convidado a sustentar para os outros constantemente sua verdade. É aquele que é admirado por ouvir todos, por anos ou décadas, zombando de sua intenção, de seu sonho ou objetivo. Diz o chavão popular que o louco com resultado é visto como genial.
O artista é a criatura que precisa ter na arte, e na sua verdade, uma força descomunal. Isso por que sociedade - apesar de ser treinada a perceber a realidade precisamente pelos artistas, visto que são eles quem aumentam o dominio do que é conhecido e incluem no repertório humano um elemento de caos e de novo - não é treinanda a valorizar a percepcão que pega emprestada de quem faz a arte.
Veja que esse Jean que queria ser artista estava muito certo do que sentia. Estava certo sobre o que gostava e sobre o que amava. Ele só não estava certo sobre como as pessoas iriam receber isso. Ele estava com medo de ser quem ele era, e com medo de se tornar quem eloe sabia que precisava ser. Muitas vezes esse Jean pobre e sem oportunidades estava mais feliz e mais sólido do que outros Jeans que viveram depois, em outras épocas, que tiveram mais abundância, mas que se perderam de si mesmos correndo atrás de algo que nem queriam. Por isso escrevo estas linhas: para que você não se perca de você. E isso é muito fácil. Tenha certeza disso.
A ingatidão dupla
A sociedade é duas vezes ingrata com o artista.
A primeira ingratidão é não valorizar a arte quando ela não está sendo ainda reconhecida por muitos consumidores (justamente no período em que o artista está mais frágil, perambulando pelas bordas do caos pela primeira vez, saindo capenga e hesitante do entorno da fogueira primitiva e indo em direcão, pela pirmeira vez, do escuro fechado da folresta noturna, ao encontro dos répteis e predadores para buscar alimento novo) ou seja: de que vale validar algo só depois que muita gente já validou, se o período de fraqueza do artista já passou - o que não deixa de ser uma forma de covardia das pessoas que não criam a dar sua cara a tapa também para dizer, por exemplo, que gostam de uma obra que ninguém mais além delas gosta.
A segunda ingratidão é quando o artista raramente é pago de forma merecida. Então a vida artística soa como um “eu respeito a sua arte, mas vire-se tentando ganhar a vida com ela”. “Eu valorizo a visão que você me empresta, mas não quero bancar de forma nenhuma a producão dessa visão.” Eu quero a criatividade. Quero invenções. Mas não quero saber quem faz isso ou como faz isso. Curisos fenômeno, não te parece?
Talvez por isso as pessoas que são as celebridades mais inalcancáveis para o indivíduo comum sejam justamente as estrelas do cinema, música, escritores. A adoração aos reis passou para adoração ao artista. Mas lembre: só alguns poucos artistas! Bem poucos na verdade. Os números mostram que 1% deles recebe muito mais do que a metade de toda atenção.
As pessoas querem ser fãs de alguém. E por que pagariam caro pela oportunidade de pousar numa foto ao lado de um grande ídolo? Por que sabem de tudo isso que abordamos aqui, mas de forma intuitiva. As pessoas sabem, em algum nível, o quanto é difícil bancar sua verdade e expor ela em uma obra. Apesar de não valorizarmos sempre a arte de forma consciente e racional, nossos mecanismos primitivos de emoção atribuem valor inestimável justamente ao que: às peças de arte!
Não fazemos isso com a ciência. Não da mesma forma. Não tratamos uma peça científica (um papper) como um objeto sagrado que é mantido sob vigia constante dentro de um museu com câmeras e vigias guardado. Talvez fariamos isso com uma peça do trabalho de um grande gênio como Eisntein. Mas meu ponto é que a arte traz algo de muito sagrado, caso contrário não tratariamos ela com tamanha adoração.
Parte III - Brincando de fazer magia
Com apenas símbolos, um papel e caneta, e tavez um computador bem básico, conseguimos criar um mundo novo! Perceba que, ao escrever dessa forma sobre minha história, eu consigo manipular minhas memórias, de modo que zombo com meus traumas do passado de cenas terríveis onde eu não poderia relatar nada além de terror, apagando assim o caráter infernal da experiência e ficando com o caráter trágico dela.
Perceba como eu posso brincar aqui, por ora falando como Jean, por ora falando como o narrador onisciente Machadiano que fala com o leitor e que zomba do texto ou de si mesmo.
Se me permite uma outra digressão: a tragédia, uma espécie de teatro grego, foi a precursora da filosofia, como deves saber. Contar histórias de formna lúdica foi o berço de um modo de pensar que acabou criando toda ciência e tecnologia que possuimos hoje. A escrita e a arte teveramum papel fundacional no que hoje podemos chamar de ser humano. A informacão deixou de ser passada de forma oral.
Imagine uma pessoa - coisa frágil e vulnerável que é, pois é facilmente destuível - carregando todo conhecimento de uma tribo de humanos primitivos enquanto anda por um ambiente extremamente hostil e inóspito. Agora pense num dos livros que mais resistiu ao tempo: a Bíblia. Enquanto impérios cairam, edificacões gigantescas foram consumidas pelo tempo e por bombas e póvora, o livro sobreviveu. Quão mágica é essa ferramenta que você está a utilizar justamente agora? Quão normal te parece isso, mas se parares para analisar o poder que tem nas mãos quem domina as palavras. Não pode ser descrito!
Uma ferramenta que me permite ter acesso ao seu cérebro e mudar ele de forma absolutamente fácil. Se eu posso fazer isso com o seu cérebro, não te parece viável que você também possa fazer modulações no seu próprio sistema nervoso do futuro através da escrita?
Dezenas de laboratórios de pesquisa focados na criacão de medicamentos que teriam a promessa de interferir com eficácia na química neuronal foram fechados nos útlimos anos por não conseguir descobrir novas formas de modulação da química do cérebro. Bilhões de dólares são investidos para que uma substãncia com essa função que estamos manuseando aqui seja descoberta, no entanto eu uso essa ferramenta de graça todo dia. Ferramenta que me permite brincar com o tempo (pois da sua perspectiva, esse texto foi escrito no passado; mas da minha perspectiva ele está sendo escrito no presente; da sua persepctiva esse texto está sendo lido no presente, da minha perspectiva esse texto será lido no futuro).
Parte IV - O país que mata a inteligência
Hoje temos 5 taças de copa do mundo, mas nenhum prémio Nobel. Temos uma mídia que faz matérias esporádicas sobre quantos superdotados estão escondidos nas suas casas, e programas que passam horas discutindo esportes em geral.
Mas só precisamos de algumas coisas:
1 - Que todo mundo saiba o que são altas habilidades e o que é superdotacão, e como funiconam esses indivíduos - estou fazendo minha parte nisso.
2 - Pessoas que sejam como os olheiros do futebol, os “olheiros da inteligência” em cada escola, empresa, em cada bairro e família.
3 - Programas, lugares, cursos, salas, escolas para estes potenciais florescerem.
4 - Retirar todas as barreiras que impedem 1, 2 e 3, sejam elas burocráticas, ideológicas, culturais...
Mas uma das coisas que não precisamos é uma burocracia gigante e interminável que acabará fazendo com que toda pessoa que tem vontade de ajudar desista.
Se precisasse de uma burocracia gigante para se gravar e vender um curso livre, eu não teria montado meu curso sobre altas habilidades e superdotacão. Com meu TDA e com a minha pressa? Pode ter certeza que não ia acontecer!
Talvez daqui a 30 anos podemos ter uma sociedade onde ambos os meninos, o atleta, e o menino com inteligência verbal ou lógico matemática, terão um sistema de prospeccão de talentos eficaz e eficiente. * Não entrarei na discussão se a habilidade esportiva é uma inteligência ou não. Deixaremos esse tema para outra edição.
Não se engane: talvez a nossa luta seja muito mais difícil do que foi a luta dos amantes de futebol. Pois o futebol não é necessariamente avesso à doutrinacão política, não é necessariamente avesso à revolta contra os burocrátas que formulam impecilhos para que se levantem contra eles jovens sedentos, inteligentes e articulados. Você pode amar futebol e ainda assim não ser altamente crítico, altamente articulado e perigoso nas sua lida com as palavras.
Não me entenda mal. O futebol pode libertar pessoas da pobreza, sim, pode fazer muito. Mas ele não é tão perigoso a quem quer manter tudo como está como é um indivíduo altamente intelectualizado, articulado e criativo, que sabe formar ideias, expressar essas ideias e reunir pessoas.
Se te parece uma teoria da conspiracão todo esse desmonte dos talentos, deixando com que morram sozinhos sem que saibam ao menos qual o potencial que têm, te digo: a mim também parece.
Mas não importa o que parece. Há um desmonte global da inteligência de toda uma nação. Justamente se parecer muito com uma teoria conspiratória pode ser o motivo de não olharmos para isso todo santo dia com indiguinação.
Então prepare-se: a luta será longa, e o inimigo seja muito mais astuto do que se possa pensar.
Começe a juntar conhecimento, conectar conhecimento, criar conhecimento, usar conhecimento e expalhar conhecimento.
Você vai ser necessário nessa luta. O objetivo é acordar os potenciais adormecidos que foram abandonados. Se você está lendo isso, você foi infectado por essa causa. Você viu o problema, e como diz Jordan Peterson: “O silêncio é uma mentira se você tem algo a dizer"
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Na próxima edicão teremos:
Estranhamente sou odiado por algumas pessoas por uma ideia extremamente óbvia e absolutamente perceptível para qualquer pessoa que tenha um gosto estético mais sofisticado do que um paladar-para-comer-papel: nossa cultura popular atual é cheia de lixo disfarçado de arte.
Temos conteúdos muito rasos em diversos setores, mas, na minha visão, o mais grave de todos é na arte. Mais grave porque na arte somos treinados a perceber o mundo. Logo, se somos treinados a consumir lixo, não demora muito tempo para perdermos o parâmetro que tínhamos antes de ser um hábito consumir todo esse lixo, e passamos a não ter mais com o que comparar o que consumimos.
Dessa forma, você faz um jovem adulto ouvir dia após dia uma música com uma batida simples e com letras obscenas que só retratam um aspecto da vida (muitas vezes o sexual) e de uma forma extremamente tosca, empobrecida, ou até mesmo grotesca, sem que ele nem perceba a porcaria que está entrando por seus ouvidos e atingindo diretamente seu sistema nervoso central. Ele fica bovinamente destruindo sua própria capacidade de raciocínio, dia após dia, como um escravo da indústria do lixo cultural, que nem sabe o efeito que aquilo que entra diretamente no seu cérebro tem.
Já parou para pensar no conteúdo que você consome dessa forma? Algo que entra dentro do seu sistema nervoso central? Pois é. Seus olhos e ouvidos são conectados com seu cérebro, obviamente. Se estamos emburrecendo como sociedade, caro leitor, talvez não seja fruto do acaso não. Esse emburrecimento tem causa bastante especifica e bastante delimitada e tem muito menos gente no mundo que tem poder de mídia e interesse que você aprenda a pensar. Tem muito mais gente interessada em te fazer consumir tanto lixo que você não vai mais nem saber quem você é em dois anos. Eu poderia ser mais bonzinho aqui e escerver "produto cultural”, fazendo uma analogia com alimento e produto alimentício (você já deve ter notado que tem mais pseudo-comida no supermercado do que comida de verdade), mas estou farto de ficar calado quando tenho algo a dizer. É lixo sim. E ninguém deveria ser treinado sistematicamente a aturar esse tipo de coisa.
Na edição #002 este narrador - mágico do tempo - vos trará uma série de argumentos e fatos para te mostrar que toda idiotice que você observa por aí não é por acaso.
Estamos matando a inteligência sim!
E estamos fazendo isso em escala industrial.
Na próxima edicão vamos ver como e o que podemos fazer para nossos filhos não viverem em algo muito próximo do que foi retratado no filme Idiocracia.
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